sexta-feira, 23 de novembro de 2012

MANUSCRITO DE UM PRACINHA DA FEB

2ª GRANDE GUERRA MUNDIAL - 1939 A 1945

Conspira contra sua própria grandeza o povo que não cultua seus feitos heroicos.

O conflito iniciou-se com a invasão da Polônia pela Alemanha, em 1º de setembro de 1939, prosseguindo na Europa, envolvendo outros países e mesmo outros continentes, até a capitulação da Alemanha, em 7 de maio de 1945. A Alemanha fez aliança com a Itália e o Japão, países do eixo. De lado oposto ficaram a França, a Inglaterra e a Rússia, obtendo a participação dos Estados Unidos, formando a corrente dos aliados. 
A rendição da Alemanha aconteceu em Reims, na França e o dia 8 de maio de 1945 é o dia dedicado à comemoração da vitória. O chefe da nação brasileira, Getúlio Vargas, após ataques a navios brasileiros, declarou estado de guerra. E o Brasil participou efetivamente desse conflito, enviando a Força Expedicionária Brasileira à Itália. 

Síntese da participação do Brasil na guerra

Estes dados, muito resumidos, proporcionam uma visão guestáltica dos resultados da participação do Brasil nesse conflito mundial.
- Efetivo total da FEB                                                  25.394
- Prisioneiros capturados                                              29.663
- Integrantes da FEB aprisionados pelos inimigos                  35
- Mortos da FEB em operações de guerra                            465
- Feridos em operação de guerra                                     2.722
- Extraviados e ainda não recuperados                                 16

(Dados da Associação Nacional de Veteranos da FEB – Belo Horizonte - Av. Francisco Sales, 199 – Floresta – tel.031.3224.9891 ou 3224.8021)
  
Canção do Expedicionário

Letra de Guilherme de Almeida
Música de Spartaco Rossi

Você sabe de onde eu venho?/ Venho do morro, do engenho,/ das selvas, dos cafezais,/ da boa terra do coco,/ da choupana onde um é pouco,/ dois é bom três é demais,/ venho das praias sedosas,/ das montanhas alterosas,/ dos pampas, do seringal,/ das margens crespas dos rios,/ dos verdes mares bravios,/ da minha terra natal./ Por mais terras que eu percorra/ não permita Deus que eu morra/ sem que volte para lá,/ sem que leve por divisa/ esse “v” que simboliza/ a vitória que virá./ Nossa vitória final/ que é a mira do meu fuzil,/ a ração do meu bornal,/ a água do meu cantil,/ as asas do meu ideal,/ a glória do meu Brasil./ ... 


MANUSCRITO DE UM PRACINHA DA FEB - Força Expedicionária Brasileira-

João Fernandes Vieira (1913 – 2005). Era natural do município de Passabém (MG) – Convocado pelo Exercito Brasileiro, para participar da ll Grande Guerra Mundial, tornou-se o soldado 721 do 10º.Batalhão de Caçadores,  sediado em Porto Seguro, em vigilância a 130 km de litoral. Era motorista profissional e, por este motivo, foi incorporado extemporaneamente, com 29 anos de idade. Tinha 1.75m de altura e pesava aproximadamente 90 kg.
Numa caderneta, adquirida na Casa Novo Mundo, de Manuel Fernandes de Almeida, rua Portugal, Porto Seguro, Bahia, em 1943, João Fernandes Vieira, o soldado 721, registrou anotações que fotografam um momento da história do Brasil, nas suas precariedades, nas suas grandezas e, sobretudo, na crença da contribuição efetiva de nacionalidade patriótica. Eis a transcrição do manuscrito na simplicidade das suas palavras:
Descrição da viagem para a Bahia. Saí de Belo Horizonte no dia 19 de abril de 1943, às três horas da madrugada. Fui para Ouro Preto. Pegamos o trem às 4h50 da manhã. Paramos em Burnier. Aí, baldeamos para outro trem e chegamos em Ouro Preto a uma hora da tarde. Fomos para o quartel. Na nossa chegada, foram presos dois companheiros e tivemos uma péssima impressão. Às duas, fomos almoçar. Foi um ótimo almoço. Depois, fomos para a 3ª.Companhia e fomos recebidos com um sermão do Mariano Henrique de Miranda Sá Sobral (nome fictício). Foi uma coisa terrível. Uma instrução no duro. Não descansamos nada.
À noite, dormimos no soalho limpo. Foi um frio terrível. Às cinco horas, acordamos com o apito dele e nos deu uma ordem unida, sem tomar café. Quase morremos de cansados. Depois que tomamos café, fomos receber a farda. No segundo expediente, houve ordem unida e, à tarde, na hora do boletim, foi um discurso nos tratando de animal. Foi assim até sair de Ouro Preto.
Houve uma festa para os soldados, comunhão geral e todos os que eram católicos confessaram e comungaram. O tenente disse que quem quisesse confessar, podia. Para ele, era uma besteira, por não crer em nada nessa religião, mas deu liberdade. Foi uma festa muito bonita. Depois da comunhão, foram servidos café e pão. Repartiram no meio da rua. Foi a nossa festa.
Com viagem marcada, fui pedir para ir a Belo Horizonte para despedir. Ele me respondeu que depois que eu saí de casa, nada devia me interessar mais. Nem notícia, porque ele não interessava por notícia de casa, porque a nação estava em guerra. Por isso, não dava licença, mas os meus companheiros podiam ir. Eu fui por minha conta. Quando cheguei, ele me pôs de revista. O coronel não queria que fizesse nada com os soldados porque iam para longe, precisavam despedir e não fizesse nada conosco.
Chegando de Belo Horizonte, botava sangue pelo nariz e estava muito gripado. Fui ao médico e ele me pôs de observação até o dia oito, de tarde. O tenente mandou que eu fosse ajudar a carregar o carro de bagagem. Eu não podia fazer força que o sangue estava saindo. Ele chegou, no meio de umas mil pessoas e me desacatou no duro. Você veio aqui pra servir ou para comer? O tenente Gonçalves falou comigo, na vista dele, que eu podia ficar à toa, porque eu estava doente. Houve cinema para todos os soldados. Ele não me deixou assistir à sessão. À noite, fui despedir do Moacir e expliquei a ele tudo. No dia seguinte, levantamos às três horas e recebemos o café e a ração para comer na estrada. Saímos para a estação de trem às oito horas. Ficamos em forma até as dez horas. Às onze horas, partimos. Foi uma despedida triste. Gente chorando que fazia dó. Tanto os soldados como o povo. Menos eu que não tinha ninguém pra chorar por mim. O maquinista deu uma manobra de um quilômetro. Passou na estação com toda velocidade. Foi triste a despedida.
Almoçamos no trem. Chegamos a Lafaiete às duas horas. Arriamos as mochilas no meio de um cinzeiro que era uma coisa terrível. Tivemos ordem de passear duas horas e às seis horas fomos jantar. Quando recebi a boia, comecei a botar sangue pelo nariz. Quando chegou “a onça”, esculhambando comigo. Saí dali. Maldade. Eu justifiquei, então ele parou de me xingar no meio de tanta gente. Saímos de Lafaiete às sete horas e chegamos em Juiz de Fora às quatro horas da manhã. Lá, tomamos café. Saímos às seis horas e fomos almoçar em Barra do Piraí, às duas horas, ouvindo tudo quanto era xingatório e grito do Sobral. Em Barra do Piraí, tivemos ordem de passear uma hora. Saí para comprar uma colher para almoçar, porque estava comendo com a mão. Encontrei com o tenente. Ele perguntou aonde eu ia. Respondi que ia comprar uma colher. Ele gritou no meio da praça: Volta pra trás! Voltei quase chorando de vergonha. Tive que comer com a mão, pois já estava quase morto de fome. Faltei só apanhar. Saímos de lá às três horas e chegamos ao Rio de Janeiro às onze horas da noite. Fomos jantar debaixo de chuva. Uma boia terrível, cheia de areia. Lá, ele expulsou dois colegas, tirou toda a roupa e calçado, só deixou com o culote e sem jantar entregou à polícia. Ouvi um dos capitães falar que era um absurdo fazer aquilo, pelo menos dar o jantar e a roupa aos homens.
Às duas horas da madrugada, encostaram o trem e nós desembarcamos debaixo de grito. Fizemos uma marcha no meio da cidade e ele falando: quem quiser ter alguma recordação do Rio, observa bem esses prédios. Tivemos uma impressão terrível porque estávamos enganados. Não sabíamos para onde íamos, porque ele sempre falava que sabíamos para onde íamos. Entramos para o navio Itaquera. Recebemos uma esteira para abrir. Deitamos no convés do navio, eu com uma dor de barriga formidável. Fui falar com o tenente que estava passando mal. Ele quase me bateu. Comecei a dormir, quando acordei todo molhado de chuva. O dia começou a clarear. Dei meu número para visita médica. Sobral falou com o médico que eu não tinha nada. Ele me receitou uma injeção, quando obtive melhora. Depois tivemos que andar para o navio Itanager. Ficamos um dia de falha. Trabalhamos a noite toda. Não descansamos.
No dia seguinte, tivemos ordem de passear. Quando saímos, ele nos deu uma nova ordem que não podíamos passear longe. Então, fui escrever uma carta e telegrafar.  Quando cheguei, não encontrei mais ninguém. Já estavam todos no outro navio. Sobral encontrou comigo, fez ameaças de me bater, esculhambou comigo no meio de umas cinco mil pessoas. Pedi licença e fui buscar a mochila e o fuzil. Só não me bateu, mas no mais, tudo. Daí a meia hora, saímos do Rio. Foi outra despedida triste. Saímos às três horas da tarde do dia doze de maio de 1943.



domingo, 11 de novembro de 2012

O HERÓI NASCE


O Fera foi atropelado!

Esse Fera não passava de um vira-lata, sem pedigree, mas estimado como se fosse o rei da Mesopotâmia.  Tinha afeição ilimitada pelo Marcim, um garoto avançado, com nove anos incompletos, que cuidava dele, com carinho especial, todos os dias da sua vida. Era afeição mútua instalada à primeira vista.  Marcim não tinha irmão e o Fera, com o seu temperamento afetivo, supria as carências do garoto. Era fera, mas, para o seu amo, era guardião.
Foi atropelado na porta de casa, numa manhã sombria. Marcim o acolheu entre os braços. Não havia sangue, mas, certamente, ferimentos internos. Fera gemia baixinho, sem forças, com respiração ofegante.
Marcim ligou imediatamente para o pai, para pedir socorro. O pai, médico, não podia atender ao chamado, naquele momento. Retornaria a ligação, logo depois, informou a secretária.. E o pai esqueceu. Marcim, ou melhor, o Fera, não podia esperar.
Avisou à mãe que iria tomar as providências e levar o Fera imediatamente a uma clínica veterinária.
- Você não pode ir sozinho!
- Eu chamo um táxi. Tenho dinheiro guardado e posso ir agora mesmo.
Sem que a mãe pudesse imaginar a alternativa, Marcim já tinha chamado o taxi que estava já esperando à porta.  Colocou o Fera numa cesta grande, forrada com uma toalha azul e saiu em disparada, sem que a mãe pudesse imaginar para qual clínica ele pudesse ir. Saiu sem endereços, mas saiu. O taxista devia saber.
Não foi difícil localizar uma clínica veterinária nas imediações. Pagou o taxista e saiu carregando o Fera, agora imóvel e respirando muito suavemente. Não gemia mais. Entrou alucinado na clínica e ficou desesperado porque tinha os procedimentos de registro de entrada. O tempo ia passando. Finalmente, o veterinário veio em seu socorro e logo os dois, ou melhor, os três, entraram numa sala toda equipada de instrumentos cirúrgicos. O veterinário examinou com cuidado, mas o Fera não respondia e estava já exalando os últimos suspiros. E o veterinário deu a palavra inesperada e indesejada.
- Nada mais a fazer!
- Não pode! Precisa fazer alguma coisa! Isso não pode ficar assim! Tem que tentar alguma coisa!
- Não há mais jeito. Sinto muito. Pode voltar com ele pra casa, mas se quiser, podemos providenciar a cremação dele aqui mesmo.
- Cremação? Isso nunca!
Enquanto vinham as imagens de tristeza e separação, de perda e abandono, eis que o pai chega à clínica.
- Que aconteceu?
- Um desastre, pai. Nada pude fazer. Ele morreu nos meus braços.
- Sem problemas... Nós arranjamos outro cachorro pra você.
- Sem problemas? Então o senhor pensa que o Fera morto pode ser trocado por um Fera vivo? Nunca. Quero levar para casa e ficar com ele mais algum tempo.
- Você tem que compreender que o Ferra, infelizmente, morreu. Temos que tomar as providências necessárias para o final. Você já está com quase dez anos e precisa compreender.
- Eu compreendo, mas não concordo. Quero levar o Fera para casa.
- Nosso apartamento é pequeno, você tem seus deveres ainda hoje por cumprir. Como ficar com o cachorro morto dentro de casa?
- Cachorro morto dentro de casa? Ele é meu amigo! Eu posso deixar na área de serviço e depois, de noite, podemos decidir o que fazer.
- Ainda de noite?
- Compreenda, pai... eu estou triste demais.  Não quero ficar chorando nesta clínica, pois nem lenço eu trouxe.  Quero ir pra casa levando o Fera comigo, pela última vez.
- Não deixa de ser complicado. Vou respeitar o seu pedido.  Certo. Concordo. Então vamos
Chegaram em casa e Marcim carregando o Fera numa cesta grande. Pesava bem uns seis quilos. Ele fez questão de não permitir que ninguém o ajudasse. Procurou um lugar para depositar a cesta. Uma mesa? A mãe, Dulcina, achou melhor colocar numa cadeira. Todos foram ver a cara ou melhor o focinho do Fera morto.
Lavaram-se as mãos. Tomaram-se banhos. Almoçaram em silêncio. A vida parecia correr como de costume, mas tudo estava tenso demais. À tarde não ficou ninguém em casa. Todos cuidando das suas obrigações.
A noite chegou e as pessoas retornaram a casa, apreensivas quanto às providências que deveriam tomar para se livrarem daquele cachorro morto dentro de casa.
Em assembleia improvisada, ficou decidido que o enterro seria no jardim, num canto mais afastado do muro. Seria realizado naquela mesma noite e combinaram com o jardineiro para fazer os procedimentos, depois das vinte e três horas, quando o silêncio fosse total..
Ninguém pôde ligar televisão, naquela noite de vigília. O telefone tocou. Uma amiga da mãe do Marcim queria falar com ela. Já passava das nove horas.
- Dulcina, estamos esperando você para o meu aniversário. Os convidados estão perguntando por você. Você se esqueceu de mim, querida?
- Oh! Desculpe, Cidinha. Aconteceu um imprevisto, um desastre, um atropelamento.
- Quê? Você me assusta. Que aconteceu?
- Fale baixo porque estamos em orações no velório, na sala..
- Velório? Pelo amor de Deus, o que aconteceu?
- Acenderam as velas em torno do corpo e apagaram-se todas as luzes da sala. Marcim, coitado, não tem irmão, mas as duas irmãs estão dando todo conforto a ele. Estão em orações e em meditação profunda..
- Não posso imaginar o que esteja acontecendo. Você está bem?
- Felizmente, eu estou bem, mas o Marcim e as meninas estão em prantos.
- Só pode ser brincadeira! Você está me passando um trote? Uma pegadinha?
- Não! Não! Às vinte e três horas vai sair o enterro.
- Você me deixa alucinada! Quem morreu? Nunca vi enterro às vinte e três horas. Onde vai ser esse enterro?
- Vai ser no quintal, bem perto do muro. Bem afastado. O jardineiro já preparou tudo.
- No quintal? Não suporto mais nada. Penso que você não está bem! Vou dispensar os meus convidados rapidamente e vou pra aí. Preciso verificar isso tudo bem de perto.
- Venha mesmo porque o Marcim vai ficar muito sensibilizado com a sua presença. Será um conforto para nós. Aguardamos você. Um beijo!
- Espere. Não saia de casa enquanto eu não chegar. Vou levar o meu filho que é médico e pode articular com o Dino, seu marido, para as providências. Fique calma porque tudo vai ficar bem. Pode ter certeza. Beijos.
Dona Cidinha sentiu o drama e relatou para as amigas na sua festinha. Depois, cada uma das amigas deu apenas um telefonema. E cada uma das outras, outro telefonema e assim, a rede estava formada. A amiga Dulcina estava com desconforto mental. Claro, só podia mesmo estar.
Meia hora depois, dona Cidinha já estava fazendo parte dos garotos em orações e cânticos fúnebres. Cinco minutos depois, chega uma vizinha que tinha ficado sabendo. E assim, foram chegando as amigas, todas empenhadas em dar assistência imediata a dona Dulcina.
O pobre Fera, exposto no meio do salão, não ouvia nem via mais nada. Não latia. Dormia eternamente.
Dona Dulcina teve que preparar cafezinho para as amigas e o vira-lata Fera jamais teria pensado que o seu enterro fosse tão concorrido. A sala estava cheia de amigos e amigas. Marcim agradeceu a todos os presentes e sentiu-se mais confortável quando retornou a casa, deixando o Fera num lugar tranquilo e rodeado de flores.         
            
      

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

MARÍLIA DE DIRCEU - ENTREVISTA VIRTUAL


No imaginário do povo brasileiro reina a musa, a bela Marília de Dirceu, Maria Doroteia Joaquina de Seixas, em toda a sua plenitude de inspiração poética.

Apresentação
Marília de Dirceu tornou-se o mito amoroso literário do Brasil, pelo seu ardente e frustrado amor, dedicado ao poeta e jurista português, Ouvidor da Corte, Tomás Antônio Gonzaga, que a retratou nas suas liras, imortalizando-a, como o fez Petrarca a Laura e Dante Alighieri a Beatriz. Três musas imortais!  
Ele, Tomás Antônio Gonzaga, era um quarentão e ela uma adolescente! E o amor fluía no bucolismo das montanhas mineiras de ovelhas brancas, em saudável pastoreio, na brisa de fontes impassíveis.
Mas nem tudo são flores! O vento da desgraça ululante passa, interrompendo as juras de amor eterno e arrastando os sentimentos mais puros para os caminhos do infortúnio, do desespero, da separação repentina.  O noivo foi envolvido no movimento libertário da Inconfidência Mineira, sendo logo preso, algemado e conduzido acorrentado para o Rio de Janeiro, apesar de ser amigo do então governador da capitania. Visconde de Barbacena. Preso incomunicável, oito dias antes das bodas! Gonzaga permaneceu três anos na prisão e foi condenado ao degredo na África para sempre.
Nunca mais mandou um versinho sequer para a sua Marília tão amada, que viveu o infortúnio amoroso na mesma terra que a viu nascer e morrer, já octogenária, esperando ainda, pelo eterno noivado, qual Penélope esperando Ulisses!   

Nesta noite silenciosa e triste de Ouro Preto, invocamos a presença da bela Marília para uma entrevista virtual. Nada poderia ser mais pungente para ela que reviver os belos dias de adolescente, mas, mesmo assim, teve tranquilidade suficiente para reafirmar o inesquecível amor ao poeta Gonzaga.
Estas foram as suas palavras.    

Entrevistador - Saúdo e reverencio a bela Marilia de Dirceu, musa inspiradora do grande poeta da Inconfidência Mineira, Tomás Antônio Gonzaga! Podemos conversar um pouco?
Marília de Dirceu - No meu recolhimento espontâneo, sinto-me tímida e constrangida, tanto agora como sempre fui. Peço me desculpar por essas falhas, justificadas pela minha reclusão e pelo meu sofrimento tão duradouro.
Entrevistador - Compreendo a sua reclusão. Compreendo e imagino o seu sofrimento. Entretanto, na nossa conversa serena e simples, não me proponho a ferir mais seu coração tão angustiado, com assuntos do passado longínquo.
Marília de Dirceu - Agradeço a consideração. Mesmo assim, nem o tempo pode apagar totalmente tantas recordações de ardente amor, de desesperado amor, de amor impossível.
E - Realmente!  Nem você, nem seu noivo, o poeta, Gonzaga, nem o povo mineiro ou brasileiro puderam deixar de acompanhar e de sentir o desenlace de seu romance, vitimado pela tragédia da Inconfidência Mineira. Por isso mesmo, você é considerada como o primeiro mito amoroso literário do Brasil.
MD - Bem sei. Minha vida infortunada começou cedo. Perdi a minha mãe quando era uma menina ainda. Ela morreu jovem. Tínhamos o mesmo nome, Maria Doroteia Joaquina de Seixas. Eu e meus quatro irmãos passamos a residir com meu avô, tenente-general Bernardo da Silva Ferrão. Depois, com meu tio muito amado, de alta patente militar, João Carlos Xavier da Silva Ferrão e com minhas tias.
E - E o seu pai?
MD - Meu pai, Baltazar Mayrink, amargurado, fechou-se nas suas fazendas de Itaverava.
E - Uma infância sofrida e atribulada!
MD - Sim! Apesar dessas primeiras infelicidades, o meu novo lar foi sempre cheio de carinho e compreensões. A educação esmerada dos meus familiares maternos moldou o meu caráter. Essa e a maior riqueza que pude possuir.
E - Frequentou escolas?
MD - Só participei de cursos domésticos ou maternais em Vila Rica, para alfabetização, cálculos elementares e instrução cristã. Até meados do século XVIII, não havia, na capitania de Minas nenhuma escola de qualquer nível, para moças. Eram proibidas por ordem da Coroa Portuguesa. Só o seminário. O analfabetismo era generalizado. Em 1750 foi fundado o Seminário Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, pelas diligências do frei Manuel da Cruz. Mais tarde foram implantados os colégios jesuítas.
E - Mas possui outras riquezas, além de sua doce beleza física, do seu caráter, e de sua sensibilidade afetiva: o amor enlouquecido despertado no jurista e poeta Tomás Antônio Gonzaga.
MD - São riquezas que se esvaíram muito cedo. Encontrei o meu noivo, pela primeira vez, quando eu era adolescente ainda. Ele era Ouvidor da Coroa em Vila Rica. Minha família fazia objeções a esse namoro, principalmente pela diferença de idade entre nós. Ele já tinha quarenta anos.
E - Mas o poeta era um homem disputado na capitania, pela sua posição social, pelo cargo que exercia e pela sua elegância.
MD - Ele era realmente uma pessoa de rara sensibilidade, educado e graduado em Leis, pela Universidade de Coimbra em Portugal. Era português, nascido na cidade do Porto, em 1744, filho de pai brasileiro. Era um hábil poeta. Encantou-se por mim e passamos a ter relacionamento afetivo e literário, por quase quatro anos.
E – Afetivo e literário?
MD - Ele escrevia liras constantemente, sempre pensando em mim, em meu nome, dedicadas a uma suposta Marília. Um de seus versos: “À noite te escrevia da cabana os versos que havia feito. Mal os dava, os guardava no casto e branco seio”. Ou então: “quando apareces, na madrugada, mal embrulhada, sem fita nem flores... ah, então brilha, a natureza então se mostra tua beleza inda em flor”. “Minha Marília, se tens a beleza da natureza é um favor, mas se aos vindouros teu nome passa é só por graça do deus do amor, que terno inflama a mente e o peito do teu pastor”.  Ele escolheu o pseudônimo de Dirceu para ele. Assim, agregou o meu nome poético ao dele, para compor Marília de Dirceu, como forma literária em todas as suas liras.
E - Ele mudou seu nome para Marília?
MD - Sim. Era uma norma do movimento literário da época, o Arcadismo. O termo tem origem grega. Uma região da Grécia. Designava uma sociedade literária típica da última fase do Classicismo. Os membros da Arcádia adotavam pseudônimos poéticos pastoris, em referência à vida simples dos pastores, em comunhão constante com a natureza.
E - Que época?
MD - Esse movimento literário teve início em 1768, com a publicação de OBRAS POÉTICAS, de Cláudio Manuel da Costa, em Vila Rica. O seu término está considerado como ocorrido com o advento da obra de Gonçalves de Magalhães, SUSPIROS POÉTICOS E SAUDADES, em 1836. Não há registros oficiais desse movimento, mas Ouro Preto era a cidade mais importante do Brasil, naquela época.
E - E as liras de Tomás Antônio Gonzaga, seu noivo, todas dedicadas a você, Marília, já dão o primeiro passo para o Romantismo. Não é verdade? Falam da supervalorização do amor e na idealização da mulher, como mito. Amor constante e obstinado.
MD - Eu não poderia interpretar essas características estéticas de movimentos literários, porque vivia um romance envolvente na época.
E - Esse romance envolvente caracteriza um pré-romantismo, com características transitórias. Mas isso não tem importância senão para os especialistas. Então, como namoravam?
MD - Os encontros eram raros. Somente nas missas, nas festas religiosas, solenidades sociais. Nada mais. Ah, sim! Conversávamos pelas nossas janelas, em gestos, sorrisos, beijos distantes. Tínhamos os lenços brancos em código. Era o nosso romance, a continuidade do amor de minha primavera misteriosa. Era feliz! Era amada! Era louvada!
E - Conversavam com os lenços brancos?
MD - Pode parecer estranho nos dias de hoje, com outras percepções e formas de amar. Mas nossos lenços traduziam nossos sentimentos. Nossas mensagens, interpretadas com fidelidade. Quando encontrávamos, fazíamos outros propósitos amorosos.  
E -  Havia, pois, muito derretimento amoroso, amor-adoração, “melosidade” nas liras, erotismo dengoso e açucarado do bucolismo do poeta?
MD - É verdade. Suas liras eram unânimes em confirmar tudo isso. Sua obra contém 79 liras, 16 sonetos 2 odes e 2 poemas especiais. A primeira fase foi escrita em Vila Rica, com 33 liras. A segunda foi escrita na prisão, com 38. A terceira são 8 liras e mais os sonetos e odes, também escritas na prisão. Não escreveu no degredo.
E - O poeta era um noivo apaixonado?
MD - Ele era decididamente uma pessoa que desejava o lar, a vida tranquila e bucólica. Escreveu sobre isso muitas vezes. Assim: “Lerás em alta voz a imagem bela! Eu vendo que lhe dás o justo apreço, gostoso tornarei a ler de novo o cansado processo.”
E - E por que não se casaram?
MD - Tudo preparado para o nosso casamento. Nada podia faltar, inclusive o meu vestido de noiva, que ele mesmo ajudou a bordar. Ele era paciente, hábil.
E - E ele também bordava?
MD - Sim. Os nossos lenços eram bordados por ele, também.
E - Sim! Mas por que não se casaram?
MD - Ele foi preso, implicado no movimento libertário da Inconfidência Mineira, oito dias antes do dia marcado para as bodas. Foi preso, encarcerado, incomunicável e transferido para o Rio de Janeiro, acorrentado, apesar de ser amigo do governador Visconde de Barbacena.  Ficaram para mim as suas doces palavras: “Eu tenho um coração maior que o mundo! Tu, formosa Marília, bem o sabes. Um coração e basta onde tu mesma cabes!”
E - E nunca mais o viu?
MD - Nunca mais o vi. O meu coração partido e as minhas lágrimas foram insuficientes.
E - E os seus familiares eram pessoas de influência política na capitania. Podiam interceder por ele.
MD - Meus tios eram militares a serviço do governador e da Coroa. Não poderiam interceder por um traidor, por um conspirador. Os bens de todos os inconfidentes foram imediatamente confiscados. Quem se envolvesse era cúmplice. Tudo um desastre completo. A prisão inopinada de todos os conjurados, com o confisco imediato dos seus bens. A devassa com todos os seus rigores! A morte horrível do inconfidente Cláudio Manuel da Costa, ocorrida na prisão! A condução dos presos para o Rio de Janeiro, algemados e acorrentados. As imundas prisões! A execução espetaculosa de Tiradentes, alguns anos depois. O esquartejamento em praça pública! Um alto poste erguido com a cabeça de Tiradentes em praça pública de Vila Rica! O arrasamento de sua casa, para que nada nela jamais pudesse germinar! O sadismo exacerbado, as calúnias, as perseguições políticas, as denúncias oferecidas para granjear a simpatia do governador! Tudo um desastre.  E o meu amor seria a menor parte dessas desgraças todas! Minha vida também corria perigo. A ordem geral era mesmo o recolhimento e o silêncio.
E - E ele? E Gonzaga?
MD - Ele sofreu as mesmas angústias no cárcere! A saudade, as dúvidas, as queixas, as lembranças do tempo passado na bucólica terra fértil, de ovelhas brancas, do puro leite e da fina lã. Suas esperanças ilusórias. Os interrogatórios. A vil traição. Disse, pois: “Não são as honras que perco quem motiva a minha dor; mas sim, ver que o meu amor este fim havia de ter. Ausente de ti, Marília, que farei? Irei morrer?”
E - Restou um fio de esperança para a triste noiva?
MD - Nenhuma esperança! Meus familiares previam o desfecho da tragédia e não escondiam nada de mim. Acompanhei, passo a passo, todo o desenrolar dos acontecimentos. Tive notícia de que ele seria condenado à forca. Como eu poderia ter um pensamento de alguma felicidade a encontrar nesta vida? Depois, houve a comutação da pena. Foi condenado ao degredo perpétuo na África. Eu era realmente, nesse momento, uma noiva desesperançada.
E - Lembrava-se das conversas com os lenços brancos, das janelas?
MD - Guardei os meus lenços brancos, lavados e engomados, numa pequena caixa toda bordada de borboletas azuis. Deixei-a perto da minha cabeceira e ao me deitar, abria cada um deles, absorvia o seu perfume e, suavemente surgia à minha frente a imagem dele, com o seu sorriso de sempre, trazendo uma nova lira dedicada a Marília de Dirceu. Dobrava novamente cada lenço, conversando com eles. Colocava-os de novo na caixa bordada. Fechava-a cuidadosamente, e sentia que as lágrimas desciam lentamente. Nunca chorei. Era sempre um pranto silencioso, abafado. Meu mundo passou a ser isso. Suas palavras, ainda: “Leu-me enfim a sentença pela desgraça formada. Adeus, Marília adorada, vil desterro vou sofrer. Ausente de ti, Marília, que farei? Irei sofrer!”
E - Era uma paixão muito forte! Compreendo os seus momentos de desespero e de impossibilidade de reação. Era uma paixão de uma adolescente! Era uma paixão arrasadora!
MD - No princípio do nosso namoro, eu fiquei apenas enlevada com a sedução de uma pessoa tão importante no cenário jurídico e político da capitania.  Depois, fui me envolvendo. Finalmente, antes do desenlace, o amor me trouxe à realidade. Senti então que estava mesmo dentro de um momento de total felicidade, encontrando um homem a quem poderia entregar a minha vida por inteiro, que poderia desfalecer em seus braços. Seria amada e desejada por toda uma existência. Infelizmente, as portas do destino se abriram para outros itinerários. Não tive o direito de ser feliz.
E - A felicidade passou à sua porta apenas uma vez?
MD - As marcas de uma paixão não se desfazem com um simples estalar de dedos. Um sentimento guardado silenciosamente é mais difícil de ser calcado para o fundo do inconsciente.  Por mais amores que pudesse ter tido nesta vida, nenhum seria o amargurado primeiro amor.
E - A senhora teve uma vida de reclusão, mas foi uma vida confortável e privilegiada na sociedade da época!
MD - Vivi confortavelmente meus oitenta e seis anos como se fosse uma menina de dezessete, pois nasci em 4 de outubro do ano de 1767. Hoje, ainda brinco de bonecas! Guardo pequenos bordados, lenços brancos. Tudo por compulsão. Um pedaço de pano branco? Posso bordá-lo com uns peixinhos do mar. Para quê? Nem eu mesma sei.  Será que meus últimos suspiros foram pensando nele? Talvez ele tivesse outras formas, outros espectros para avivar a minha memória. Nem posso afirmar que o tenha visto nos meus momentos finais, ao se apagarem as minhas luzes.
E - E no degredo, em Moçambique? Nem mais uma palavra do sempre noivo e poeta Gonzaga?
MD - Nenhuma palavra me chegou aos ouvidos. Nenhuma mensagem de alegria ou de dor. Ele deve ter tido uma vida afortunada em Moçambique!
E - Quando na prisão, consta que ele propôs que a senhora o acompanhasse para a África, no degredo! Um casamento?
MD - Uma proposta que nunca chegou até mim. Será que eu mesma teria condições de me decidir a ir para a África? Será que o convite não foi apenas uma formalidade poética? Nossos caminhos se desviaram infelizmente. Que me resta? Fiz testamento de próprio punho, para impedir outras destinações para meus bens. Ainda vivi alguns anos depois. Finalmente, em 1853, me despedi da minha terra, do meu lar, do meu eterno noivado.
E - Gonzaga morreu em Moçambique possivelmente em 1810. Consta que ele tinha se casado com uma mulata analfabeta, filha de um rico comerciante português, Na época desse casamento, ele tinha 49 anos de idade e ela apenas 19. Imagino que possam ter tido uma vida pelo menos abastada.
MD - São informações vãs e frágeis para poder destruir o império de recordações, amargas e doces, de minha juventude. Mas, na vida não há passagem de retorno. Em vão, penso reviver o amor ardente. Impossível! Nem os dedos das minhas mãos me obedecem para fazer uma simples carícia, naquele rosto lindo, nas suaves expressões faciais de ternura infinda. Como posso dizer adeus à vida, sem ter realizado um simples sonho de adolescente? Minhas mãos estão trêmulas e o ar que respiro não aplaca os meus suspiros. Infelizmente, tenho que dizer adeus, assim mesmo. Digo, finalmente, para os jovens amantes, que aproveitem a vida como se os dias que passam fossem os últimos de sua vida. Cada dia deve ser vivido como se fosse realmente o último. Depois disso, vem a desesperança. Inevitavelmente! Essa é a grande trapaça desta vida!  Desculpe, tenho que sair! Não estou suportando a mágoa dessas lembranças.
E - Perdão! Antes de nossas despedidas, gostaria de perguntar se a senhora teve conhecimento de tantos poetas que escreveram sobre a doce Marília?
MD - Sei, sim. Tantos e tantos. Outros tantos ainda virão. Recolho todos esses fragmentos de inspiração poética e guardo-os no meu casto e branco seio.
E - Lembra-se do poeta Bueno de Rivera?
MD - Sim! Impossível esquecê-lo! A minha emoção está sufocada. Tudo é passado! Passei a minha vida, quase toda, procurando o aroma das brisas nos campos floridos, cheios de ovelhas brancas.
E - Há dois séculos a mão paciente borda o inacabado vestido de noiva! Borda com enlevo rosas no ombro, borda açucenas vivas no colo. Borda um colar de anjos na gola. Borda cirandas na barra da saia. Borda coroas de abelhas nos punhos. Borda na manga um peixe voando. Borda uma ave de ouro no umbigo. Borda uma lira no bico do seio. Borda nas costas um campo de trigo.
Os dias se enrolam como carretéis. Se desenrolam de novo, de novo se enrolam, A agulha de prata segue no tempo bordando, bordando na casa da amada, na ponte em suspiros, no vil calabouço, nas terras da África, na morte no exílio.
No silêncio mofado do museu histórico, as falanges secas prosseguem bordando o longo vestido do eterno noivado.
MD - Volto meus olhos ao poeta mineiro em sublime agradecimento pela minha memória, dois séculos passados! Meu longo vestido do eterno noivado!
E - E Cecília Meireles:
Este é o lenço de Marília, pelas suas mãos bordado, nem a ouro nem a prata, somente a ponto cruzado. Este é o lenço de Marília para o amado. Em cada ponta, um raminho, preso num laço encarnado, no meio, um cesto de flores, por dois pombos transportado. Não flores de amor-perfeito, mas de malogrado!
MD - Um belo poema que não tive oportunidade de conhecer em vida. Agora, sinto-me ainda constrangida, tímida e cansada de tudo.
E - Não pretendemos estender o seu sofrimento com tantas recordações. Agradecemos as suas sentidas e amarguradas palavras. Os nossos agradecimentos. Entretanto, neste final, todos ficam esperando as suas despedidas, Marília, sempre bela e sempre amada!
Marília de Dirceu - Meu olhar vagueia pelas montanhas abruptas das cercanias e pelo vasto campo onde pastoreiam as minhas ovelhas, ainda hoje.  Adeus campos floridos! Adeus amores perdidos nas brumas do tempo! Adeus terra que me viu nascer e morrer! Parti desta vida, mas pairo abençoando os corações enamorados, por onde quer que se encontrem. Adeus!
Entrevistador - Esta é a musa brasileira!


TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor da Coroa Portuguesa em Ouro Preto, nasceu na cidade do Porto – Portugal, em 1744. Era graduado em Direito pela Universidade de Coimbra. Vindo para Ouro Preto, enamorou-se de Maria Doroteia Joaquina de Seixas, escrevendo todas as suas liras em seu louvor, transformada em Marília de Dirceu. Com ela iria se casar, mas foi preso, envolvido no movimento libertário da Inconfidência Mineira, oito dias antes das bodas. Foi levado acorrentado pra o Rio de Janeiro, onde ficou preso por três anos e depois do julgamento, foi deportado para a África, onde ficou até a sua morte, sem nunca mais ter visto a sua amada noiva.
Suas liras são divididas em três partes: a primeira, escrita em Ouro Preto. A segunda e a terceira durante a prisão. Aqui está uma das suas últimas liras.

 

A UMA DESPEDIDA

PARTE III

Chegou-se o dia mais triste
Que o dia da morte feia;
Caí do trono, Dircéia,
Do trono dos braços teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Ímpio fado, que não pôde
Os doces laços quebrar-me
Por vingança quer levar-me
Distante dos olhos teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Parto, enfim e vou sem ver-te,
Que neste fatal instante
Há de ser o teu semblante
Mui funesto aos olhos meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

E crês, Dircéia, que devem
Ver meus olhos penduradas
Tristes lágrimas salgadas
Correrem dos olhos teus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

De teus olhos engraçados,
Que puderam, piedosos,
De tristes em venturosos
Converter os dias meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Desses teus olhos divinos,
Que, ternos e sossegados,
Enchem de flores os prados
Enchem de luzes os céus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Desses teus olhos, enfim,
Que domam tigres valentes,
Que nem rígidas serpentes
Resistem aos tiros seus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

De maneira que seriam
Em não ver-te criminosos,
Enquanto foram ditosos
Agora seriam réus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Parto, enfim, Dircéia bela,
Rasgando os ares cinzentos;
Virão as asas dos ventos
Buscar-te os suspiros meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Talvez? Dircéia adorada,
Que os duros fados me neguem
A glória de que eles cheguem
Aos ternos ouvidos teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Mas, se ditosos chegarem,
Pois os solto a teu respeito,
dá-lhes abrigo no peito,
junta-os c´os suspiros teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

E quando tornar a ver-te
Ajuntando rosto a rosto,
Entre os que dermos de gosto,
Restitui-me então os meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!


BIBLIOGRAFIA 
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu.RJ:
Ediouro, RJ, 1997
SANCHEZ, Alexandre. Maria Dorothea, a musa revelada. Belo Horizonte: Gráfica e Editora Lima Ltda, 2006.
VASCONCELOS,  Salomão. A casa de Marília.Belo Horizonte: revista do IHGMG, n.VII  pág. 15
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro:  ed. Objetiva, 2001
CARNEIRO,  David. Marília um novo julgamento da inspiradora de Gonzaga. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1952
JÚNIOR, Augusto de Lima. O amor infeliz de Marília de Dirceu. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1998
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