sábado, 8 de setembro de 2012

CHICO REI - ENTREVISTA VIRTUAL

A lenda, o mito, o ícone, o folclore


Chico Rei, nasceu no Congo como um monarca guerreiro e sumo-sacerdote do Deus pagão Zambi-Apungo, foi capturado com toda a corte por comerciantes portugueses de escravos e vendido com o filho Muzinga no Rio de Janeiro, de onde foi levado assim como tantos outros escravos africanos em 1740, para trabalhar na mineração de ouro. Sua esposa a rainha Djalô e a filha, a princesa Itulo, foram jogadas no oceano pelos marujos do navio negreiro Madalena para aplacar a ira dos Deuses da Tempestade, que quase o afundou.


Apresentação
A história não registra seus dados biográficos. Também, qual teria sido o seu verdadeiro nome, registrado nos cartórios? Teria sido batizado?  Teria sido alforriado? Teria sido camuflada a sua identidade por algum  motivo?  Por isso mesmo, as brumas do tempo conduzem às dificuldades de provar que ele tivesse realmente existido. Mesmo assim, sua vida, seus fatos e atos foram construídos pela imaginação popular, e foram fortemente urdidos que se consolidaram e, hoje, acredita-se que ele tenha mesmo vivido em Vila Rica do Ouro Preto como escravo e como rei africano de muita sabedoria e com  muita disposição para amar e para servir a seu povo. Vale a pela conhecer essa história, ou essa lenda, como modelo de soberano e de escravo, em toda essa dicotomia imaginária.

Entrevistador – Ao receber o nosso herói e mito Chico-Rei, é necessária uma pergunta: gostaria de ser chamado de  Alteza?
Chico-Rei – Estamos num país livre e democrático. Pode me chamar de você, com muita honra. Fui realmente rei da nação africana do Congo e hoje me deram o título de Chico-Rei, depois de ter sido escravo do Major Augusto por mais de dez anos.
E – Você é um imigrante africano para Vila Rica do Ouro Preto, em busca do ouro?
CR – Não fui um imigrante por livre e espontânea vontade. Fui sequestrado pelos portugueses no meu próprio reino no Congo, com toda a minha nobre família, meus auxiliares diretos e minha guarda militar.
E – Sequestrado? Já havia sequestro nessa época?
CR – Violentos sequestros.  Grandes arrastões. Pegava-se um povo livre e fazia dele escravo para o resto da vida. Sequestro para a escravidão.
E – Mas os portugueses e espanhóis eram traficantes apenas de prisioneiros de guerra de países da África.
CR – Inicialmente, talvez, sim. Os próprios monarcas vendiam também os criminosos comuns. A oferta foi diminuindo e a demanda aumentando. Os traficantes de negros passaram a sequestrar mesmo, no melhor sentido da palavra. Havia agentes especializados.
E – Como ocorreu isso? Não tinha guarda o seu império?
CR – Uma emboscada no Templo do nosso Deus Zâmbi Apungo. Muito triste. Fomos cercados e surpreendidos. Fomos presos e amarrados dez em cada vara comprida e ali ficamos sem movimentos. Tudo muito rápido. A princípio, pensamos que fossem os Zagas. Uma tribo de canibais que estava ameaçando invadir o nosso território. Por isso, refugiamos no templo. Essa tribo podia estar invadindo o nosso país. Pensávamos que eram os Zagas. Depois, ouvimos palavras na língua portuguesa e percebemos que o mal seria muito maior.
E – Foi uma infelicidade! Quantos foram aprisionados.
CR – Quase quatrocentas pessoas. Mas, liberaram os velhos imprestáveis e as crianças muito pequenas. Eu era rei do Congo e estava prisioneiro, junto com a rainha, com minha filha Itúlu e com meu filho, Musinga, que tinha 15 anos.
E – Eram os traficantes de negros?
CH – Sim. Ficamos sabendo que eram traficantes portugueses e que nosso destino era a viagem de despedida de nossa terra. Despedida para nunca mais, isso tínhamos a certeza.
E – E todos foram embarcados no navio Madalena?
CR – O nosso traficante formou um grupo de 191 pessoas. Fomos marcados com ferro em brasa e tivemos que ser batizados primeiro, antes do embarque. Era proibido pelo rei de Portugal traficar negros sem batismo. O papa já tinha descoberto e decidido que os negros também tinham alma.
E – E como foi esse batismo?
CR – Chamaram um padre, às pressas. Ele jogou um punhado de sal na multidão e, depois, um balde de água benta, dizendo: “todo homem vai chamar  Francisco e toda mulher vai chamar Maria”!
E – Havia muita gente no navio?
CR – Quase seiscentas pessoas, pertencentes a vários outros traficantes. Cada um deles cuidava do lote dos seus prisioneiros. Acorrentados a uma vara de madeira, como se fosse uma fieira de peixes. Cada fieira com dez prisioneiros. Cada um cuidava do seu grupo.
E – Cada um cuidava do seu grupo? E como era a alimentação e a higiene dentro da embarcação?
CR – A comida era milho cozido. Higiene nas fileiras? Que higiene?
E – E quantos dias de viagem?
CR – Nem sei. Uns vinte. Pra mim, uma eternidade.
E – Chegaram todos ao destino?
CR – Todo dia morria muita gente. Uma tempestade obrigou ainda o comandante a descarregar muita gente no mar, para aliviar a carga. Mulheres e crianças tinham menor valor e foram descarregadas no mar bravio. A rainha e a minha filha se foram. Fiquei com Muzinga.
E – Vocês sabiam para onde estavam indo?
CR – Nunca pude entender. Para o mar, para a morte, para o inferno. Nada podia ser pior. Só os mais fortes não morreram. Nosso grupo mesmo ficou pequeno.
E – E desembarcaram onde?
CR – Dizem que na cidade do Rio de Janeiro. Mas nosso barco ficou ao largo. Por causa da fedentina não podia chegar ao cais. Um bote de aluguel ia buscando os negros, aprisionados por lotes, de acordo com a posse de cada traficante.
E – Levados para onde?
CR – Para o mercado de escravos, no cais do porto. Os negros eram lavados e esfregados. Todos nus, trabalhados por outros escravos que faziam esse serviço. Chegavam compradores e os negros tinham que ficar fortes e bonitos, para atrair compradores. Era uma feira pra venda de negros. Uma festa para muitos curiosos que assistiam ao espetáculo.
E – Esses negros lavadores falavam a sua língua do Congo?
CR – Alguma palavra eu entendia deles. Mas não podia conversar porque senão vinha um chicote quente pra todo mundo.
E – Você, quer dizer, o grupo do Congo, foi vendido para um minerador de Vila Rica, o Major Augusto.
CR – Não sabia o nome dele ainda. Eleutério era escravo do Major Augusto e gostou de nós. Separou um lote dos nossos companheiros do Congo, nos separou e fechou negócio.  Eleutério e o filho do Major Augusto passaram a cuidar das nossas feridas.
E – Aí vocês foram para Vila Rica?
CR – Não naquele dia. Fomos dormir num depósito de escravos, no meio de umas palhas de milho. Foi a primeira noite de sono. Sono intranquilo. Cheio de preocupação. Musinga, felizmente, ficou no meu grupo. Imagina se tivesse que me separar da única pessoa no mundo mais querida! Musinga dormiu do meu lado, um sono profundo. Outros grupos, de outros traficantes dormiam no mesmo local.
E – Viajaram na manhã seguinte?
CR – Na hora da partida, separamos dos amigos e companheiros. Era uma manhã de sol assim. Mas ninguém tinha olhos para ver o sol e o esplendor da manhã, para ver a natureza, perdidos que estávamos na noite do nosso destino.
E – E aí?
CR – Prontos para a viagem, saímos do armazém de escravos, vendo os companheiros que ainda ficavam para ser comercializados. Lancei um olhar de despedida definitiva.
E – E se separaram?
CR – Eu, o rei do Congo, vendo meus súditos algemados, infelizes e famintos em suas fieiras, humilhados e subjugados, feios e fedorentos, mas eles eram, sobretudo amigos inesquecíveis, não pude deixar de chorar sem controle.
E – Era a hora da separação definitiva?
CR – Olhei soberanamente e me despedi, abençoando: “Até nunca mais, irmãos! Para vocês, meus companheiros, as minhas lágrimas. Para eles, o meu ódio!”
E – Você falou isso na língua Conga?
CR – Sim! Ninguém mais deve ter entendido. Só mesmo meus companheiros e alguns prisioneiros presentes puderam registrar esse momento cruciante.
E – Mais alguma coisa, nesse momento de despedida?
CR – A fragilidade das palavras não permite invadir mais profundamente os corações humanos. Mas quem tem a clareza e o brilho no pensamento pode, no seu íntimo mais profundo, dar o devido valor a uma despedida como essa. Milhares de negros sentiram esse momento em suas vidas, nesse indescritível calvário.
E – E viajaram a pé, sem destino conhecido.
CR - Viajamos a pé uns cinco dias e chegamos a um lugar numa noite de chuva fria e de muito frio. Dormimos num grande salão e tivemos um grande couro no chão. Aí, amontoadas as vinte e nove rezes do nosso lote. Noite longa e sofrida.
E – Vocês sabiam que estavam em Vila Rica, a cidade que mais produzia ouro do mundo?
CR – Quando acordamos de madrugada, eu pensava que tinha morrido e estava no inferno mesmo. Mas inferno frio. Depois, vi que estava vivo. Melhor ou pior? Nem sei mesmo. O que eles querem da gente? Eu não sabia onde estava. Que terra é essa de frio e neblina? Perdi tudo, perdemos tudo. Ainda bem que não perdi meu filho Musinga. Nada existe de pior, mas não perdemos a vida. Sobreviver mais um dia. Ainda temos alguma coisa que é nosso. Não perder a vida. A luta só acaba com a morte. Fazer tudo para não perder a vida. Sofro junto com meu povo. Um dia, ainda saio dessa, Musinga. Nenhum Deus deseja mal a ninguém.
E – Major Augusto era o dono dessa nova tropa de escravos. Devia estar precisando de gente jovem e forte para o trabalho das minas de ouro. O ouro sumia de uma mina e aparecia noutra.
CR – Fomos trabalhar na mina da Encardideira do Major Augusto. Arrancar barro do chão. Falei pro meu pessoal: eles querem barro, vamos arrancar barro pra eles. Muito barro. Nada de ficar pensando. O escravo Eleutério acompanhando, dando ordens.
E – A tropa era boa de serviço?
CR – Eu tinha 36 anos e meus companheiros mais ou menos a mesma idade. Só o Musinga era menino. Tropa nova e valente.  Não passou uma semana, Major Augusto estava rindo à toa. O ouro apareceu outra vez.
E – Apareceu muito ouro? Major Augusto reconheceu?
CR – Major Augusto ficou pensando que a tropa nova sabia achar ouro de qualquer lugar. Eleutério me disse que nunca tinha aparecido tanto barro e tanto ouro. Os negros cavavam até com as unhas, mas o barro saía. Na hora de lavar, o ouro brilhava no fundo da bateia. Major Augusto ria.
E – Major Augusto estava quebrado. Toda a cidade ficou sabendo que a tropa nova era mesmo de sorte. Pagou as dívidas e esbanjou riqueza em pouco tempo.
CR – O tempo foi passando. Eles querem o barrão? Vamos dar o barro pra eles. Ninguém precisa revoltar ou chorar. Ficar firme no trabalho. Um rei cavando terra com os súditos. Amigos e companheiros. Mas, um dia o major Augusto até tentou falar comigo. Eu já sabia umas palavras. Ouro, bateia, trabalho, barro.  Ele gostou. Eleutério gostou de mim. Major Augusto gostou de mim, gostou da tropa nova.
E – O que é que vocês no seu grupo conversavam sobre isso?
CR – Eu disse para os meus companheiros que a vida tinha recomeçado. O pior já tinha passado. O caminho agora é outro. Eles querem é barro. Vamos tirar barro pra eles. Ninguém vai contra. Revolta é besteira. Barro por comida.
E – Major Augusto queria trabalho e obediência. Ele dizia que os negros aprendem pela pedagogia da panela e do chicote. E muito rapidamente.
CR – Os castigos eram dados pra outros escravos. A tropa nova não carecia. Só a panela chegava pra nós.  Tivemos o direito de batear pra nós mesmos aos domingos. Começamos a juntar um pouco. Entregava tudo pro Guima, que era nosso ministro das finanças do Congo. Guardava nosso ouro em separado. Não pensava pra quê. Um dia vamos precisar. Juntar os pouquinhos.
E – E o ouro apareceu mesmo em outras minas do Major Augusto?
CR – Nosso grupo dava sorte. Foi repartido um pouco de nós em cada mina. Musinga foi pra Catas Altas. Sofri muito com isso. Não sabia onde era Catas Altas. Achei que era longe demais. Tinha medo de Musinga levar um bacalhau. Era menino. Se isso acontecesse, minha vida estava perdida porque não ia tolerar isso.
E – Quer dizer que a tropa nova foi dividida e subdividida?
CR – Com o tempo correndo, nem sei quanto. Dividir pra dar sorte. Não era sorte, era trabalho pesado e continuado. Mas deu resultado mesmo. Onde os negros da tropa nova apareciam o ouro vinha atrás. Depois de mais de ano de trabalho nas minas, Major Augusto ficou doente. Eleutério me chamou pra visitar o major Augusto que estava com costela quebrada por causa de briga com escravos na horta dele. Pela primeira vez, conversei direto com ele. Major Augusto agradeceu e pediu mais. Pedi ao Eleutério pra trazer Musinga pra perto de mim. No dia seguinte, ele veio. Quase chorei de alegria. Fiz um pedido e o pedido foi concedido. Vi que estava no caminho certo.
E – Você voltou outras vezes à casa do Major Augusto?
CR – Tudo que ele precisava, Eleutério me levava lá pra falar com ele. Eu entrava muito respeitoso. Ele me pediu pra pegar uns escravos angolanos que tinham fugido. Eu fui atrás deles nas matas e nas montanhas. Depois de três dias estava com os negros de volta. Trouxe de volta. Falei com eles que não adiantava nada. Iam morrer da mesma forma. Fugir era besteira, era a morte. Major Augusto deu umas chibatadas e perdoou a dívida deles.
E – Havia negros de várias tribos africanas em Vila Rica?
CR – Tribos demais, com línguas diferentes que eu nem conhecia. Velhos, mulheres e crianças.
E – E os velhos trabalhavam muito?
CR – Os velhos trabalhavam do mesmo jeito, Depois de muito tempo, um ano ou dois, o Guima chegou dizendo que tinha visto um negro velho bateando sem aguentar nem o peso da bateia. Quase morrendo de velho. Mandei ele comprar esse velho.  O Guima disse que o senhor dele ia pedir cinco mil réis. Mandei ele oferecer dois. Se o senhor não quisesse, falasse na língua dele para o negro desmaiar e cair no chão. Meia hora depois, chegou o Guima com o negro Quilamba puxado pela mão. Vinha agradecer. Era o Quilamba que já foi comandante de exército no Congo e agora, velho demais pra trabalhar nas minas. Quilamba agradeceu e sorriu. Tinha ainda uns dentes bonitos esse velho Quilamba.
E – Quer dizer que agora vocês tinham comprado um escravo? Entraram no comércio de compra e venda da mercadoria humana?
CR – Guima ainda tinha muito dinheiro ajuntado. Mas agora eu tinha que dar comida e cama pro velho Quilamba. Aluguei um quartinho pra ele e comida todo dia. Mas não parou aí. Mais um velho todo dia. Um velho imprestável. Pra nós, prestava. Nossa despesa aumentou.
E – E foi comprando negro velho? E alforriava?
CR – Mais do que a alforria. Pensão pro resto da vida.
E – E você?
CR – Meu ideal era a alforria tanto minha, do Musinga e de toda a nossa tropa nova do Congo.
E – E o Major Augusto?
CR – Ficou doente demais, pronto pra morrer. As minas secaram, as dívidas apareceram outra vez. O tempo passando. Eleutério era escravo de confiança.
E – Você comprou a sua alforria?
CR – Um dia, na bateia de domingo, achei uma pepita de outro de 300 quilates. Com ela, podia comprar a minha alforria. Major Augusto não queria ceder. Precisava de mim. Padre Figueiredo intercedeu e o Major me alforriou. Fiz promessa pra ele de continuar trabalhando pra ele também. Major Augusto tinha confiança total em mim. Acabou sendo mesmo meu amigo e eu passei a ser feitor dele, também.
E – Alforriou outros companheiros?
CR – Alforriei Musinga e todos os companheiros, um a um, mas continuamos trabalhando, até que um dia Major Augusto mandou me chamar com urgência. Tremi, pensando que era algum roubo ou desgraça de algum dos companheiros. E ele foi logo me dizendo: “queria vender a mina da Encardideira pra você!”. Fiquei tonto. Como? Nem era possível! Comprar uma mina de ouro? Sabia que essa mina não dava mais ouro, mas era um sítio bom pra morar e local para os velhos. Tinha impostos atrasados. Mina abandonada há muito tempo. Com quê eu pago? Não tenho nada! Ele disse que eu pagava quando pudesse. Fiquei tonto. Disse que se o Major quisesse, eu ficava com ela. Pagar aos pouquinhos. Estava carregada de impostos antigos, eu sabia. Mas era uma mina de ouro.
E – Ficou tonto?
CR – Fiquei tonto. Era de noite. Cheguei no quarto e Musinga dormia. Acordei ele depressa.  Ele ficou assustado. Assustava à toa. Pensou que eu tinha sofrido uma desgraça. E foi logo falando: que é que foi? Que é que foi? E eu fui logo falando: “o major Augusto vendeu pra nós a mina da Encardideira. A Encardideira é nossa agora”.  Ele ficou aliviado. Que susto. Zâmbi Apungo! Que susto! Nessa noite ninguém dormiu. Um ex-escravo, proprietário de uma mina de ouro em Vila Rica. Musinga chorou comigo. Abracei meu filho e choramos juntos, lembrando do resto da nossa família jogada ao mar. Do nosso sofrimento! Nunca pensei que um dia eu tivesse um momento de alegria. Pra mim, a vida já tinha ido embora. Agora, essa emoção, essa alegria. Como é que pode?
E – Tudo mudou desse dia em diante?
CR – Nem sei mais. Meus companheiros juntos rezaram e choraram de alegria. Guima providenciou a forma de pagamento. Mas chegou a notícia de que o companheiro Guimiú, ex-oficial da guarda do Congo não tinha podido vir. Estava doente na cama. Guimiú era valente e forte demais pra ficar deitado na cama, deixando de comparecer a uma reunião do seu chefe Galanga Musinga, seu atual Chico.
E – Que fez então? Guimiú não compareceu? Revoltado?
CR – Doente. Fui ao quarto dele, depois. Vi como estava magro com diarréia constante e nenhum remédio do boticário resolvia. Era um trapo, deitado sobre uns panos sujos na senzala. Hoje não pode levantar, não pode comer, não pode sorrir, sem motivos e sem vontade. E ele me disse: “tudo acabado, meu rei! Estou meio morto”. Respondi que não somos nada e que tudo podia voltar e ele ficar bom de novo. Ele disse: “minha vida está cumprida, meu rei. Entrego as armas.”  Disse pra ele que todos os irmãos do Congo estavam fazendo de tudo por ele. Estavam juntos. Guima comprou de tudo pra você. Não vai faltar remédio, temos dinheiro.
E – Estava com maculo? Aquela disenteria incurável pela falta de higiene e de alimentação adequada. Estava deitado?
CR – Não conseguia levantar o braço. Chorou por isso. Disse ainda: “não consigo levantar a mão para uma saudação ao meu rei. Tenho vergonha por isso. Terra má, que acaba com um oficial do meu rei estimado”. Eu disse para ele que o rei estava aqui, com ele. Não pude impedir a queda de minhas lágrimas de despedida. Ele disse: “digo adeus para o meu rei generoso.” Eu me senti um rei fraco, deixando cair lágrimas frente ao meu oficial. Estava ainda com a cabeça cheia de tristeza, num momento final. Os amigos escravos da tropa nova desfilaram a sua frente. Ele disse que tinha vergonha de permanecer deitado, diante do seu rei. Foi a sua despedida. Em seguida, ele fechou os olhos. Do lado de fora, 27 companheiros começaram a entoar um hino da nossa terra, iluminando a sua despedida. Ficamos sentados, agachados na porta da senzala a noite inteira. Meu oficial, o oficial Guimiú!
E – E tudo acabou! Mas você freqüentava igrejas?  Pertenceu a irmandades religiosas?
CR – Negro escravo nem forro podia nem entrar nas igrejas hora nenhuma. Irmandades eram só dos brancos. Mesmo assim, consegui amizade com o velho Canuto, sacristão. Por ele, visitei igrejas todas nas horas vagas. Ele me contou muitas histórias de santos, principalmente de Santa Ifigênia. Eu ficava horas ouvindo Canuto me contar histórias de santos.
E – E festas dos negros?
CR – Havia muitas festas, batuques, com cantorias e tambores. Eu ouvia de longe. Nunca frequentei. Ouvia e ficava triste, matutando. Meu negócio era conseguir dinheiro para a alforria dos meus amigos. E isso foi feito. Alforria, uma por uma. Musinga foi o primeiro.
E – Foi alforriando os companheiros da tropa nova?
CR – Um por um. O Guima pagava e o negro escravo vinha me agradecer, mostrando os braços fortes para o trabalho. Fazia continência e alguns tentavam beijar meus pés. Nunca aceitei. Levantava o amigo e batia meu peito no peito dele, num abraço de irmão total. Renascemos juntos na desgraça, na humilhação e na tristeza. Vamos continuar juntos agora, mais uma vez, na procura de um lugar menos infeliz.
E – Mas agora você era um minerador livre e alforriado? Como ia a extração do ouro na mina Encardideira?
CR – Primeiro, levamos nossos velhos alforriados todos para morar nos ranchos da mina. Eles mesmos queriam ainda produzir e botaram a mão no barro. A tropa nova, os companheiros trabalhavam dia e noite. Foi uma festa tirar o entulho de mina velha, cheia de mato, cobras e lagartos.
E – E o ouro apareceu?
CR – Três dias depois, entramos direto na mina. Arrancamos muito barro em amontoado perto das bicas. E o ouro começou a aparecer pra nós.
E – Muito ouro?
CR – Musinga veio correndo para me mostrar. Não tinha mais pote pra guardar o ouro em pó. Tivemos que providenciar. Tivemos que reunir nosso grupo e pedir silêncio. Nada de ficar gritando, festejando quando o ouro aparecia. Podia dar alarme e os roubos eram certos. Além disso, as autoridades não acreditavam em negros de qualquer tribo. Nossa vida melhorou. Fizemos do nosso grupo uma nação independente. Um por todos.
E – Ficaram ricos?
CR – Ricos não posso dizer. Tinha os potes cheios de ouro, tinha vida melhor e livre. Comecei a agradecer os santos que o Canuto trazia pra nós nas suas histórias. Fiquei amigo de Santa Ifigênia e da irmandade dos negros. A igreja de Santa Ifigênia era nosso trabalho de hoje em diante nos dias de folga.
E – E os negros velhos que ainda trabalhavam por toda parte. Os negros também envelheciam.
CR – Nossa tropa nova, todos os companheiros decidiram alforriar qualquer velho de qualquer nação africana. Depois, cada um dos velhos ajudava os outros. Tudo aumentou muito depressa demais. Nosso trabalho era arrancar ouro, alforriar velhos e construir a igreja de Santa Ifigênia, na capela de Nossa Senhora do Rosário. Muita luta dia e noite.
E – Dizem que o Governador Gomes Freire quis conhecer você?
CR – Major Augusto, muito debilitado na cama, mandou me chamar urgente. Fui correndo e tremendo. Cheguei lá na casa dele, no quarto dele, estava Dom Manuel da Cruz, bispo de Mariana. Estavam conversando. Quando eu cheguei, tomei a bênção ao Major e ao bispo. Tudo conversado. Fiquei tremendo. Fiquei ouvindo e observando. Falaram da comunidade negra e do meu rancho de negros velhos. Por final, me disseram que o Governador Gomes Freire tinha mandado me chamar no Palácio, no dia seguinte. Agora eu tremi mesmo. Tremi todo. O ar que eu respirava desapareceu de uma vez por todas. Agachei num canto, esperando um ventinho chegar. O Governador? Vi meus anos de trabalho duro irem por água abaixo. Vi meu povo, agora meu pequeno povo de meu pequeno e humilde país, sofrer nova derrota. Tudo seria arrasado novamente.  Sabia que esse chamado seria uma desgraça para meu povo. Tive a visão completa da nossa desgraça, da destruição do nosso trabalho. Era a infelicidade. Eu previa que nós não podíamos alcançar nada, porque seria destruído. Fiquei triste e apreensivo demais.
E – E  dom Manuel da Cruz, o bispo de Mariana já era seu conhecido.
CR – Era meu conhecido porque rezou missa na Encardideira para meu povo, no primeiro dia de nosso trabalho. Viu nossos velhos, viu meu povo, abençoou cada um e batizou muitos dos nossos companheiros.
Conversou com alguns dos nossos velhos, amparados por nós. Admirou tudo que viu e nos abençoou.
E – E o que ficou combinado na casa do Major Augusto?
CR – O Governador Gomes Freire tinha mandado me chamar, urgente. Marcou audiência para amanhã, às 14 horas. O bispo falou que iria comigo. Fiquei mais aliviado. O que queria o Governador com esse pobre africano alforriado?
E – Mas você foi à audiência?
CR – Tive que ir.
E – Como foi?
CR – Comprei um paletó branco de algodão, uma calça de brim amarelo e uma sandália nova. Fui lá com dom Manuel da Cruz. O palácio bonito demais. Me vi outra vez no Congo, onde tudo era meu. O Governador queria saber sobre esses velhos pretos. Queria me colocar como membro da guarda de cavalaria e autorizou a minha festa de senhora do Rosário. O bispo tinha pedido a minha coroação como o rei do Congo no Brasil. Cheguei muito humilde e ele estava querendo conversar comigo. A guarda ficou de longe e o bispo teve que se afastar depois. Fiquei sozinho com o Governador Gomes Freire. Comecei a falar sobre o meu reinado no Congo. Ele pediu mais. Queria saber de tudo. Contei da viagem. Ele pediu mais. Me chamou para um canto. Pediu pra falar da minha filha Itulu, que na minha língua significa flor. Falei da rainha jogada no mar. Falei de tudo. Falei tudo. Ele queria saber tudo. Ele botou a mão no meu ombro e me abençoou. Disse que podia fazer a festa do Congo na igreja de Santa Ifigênia, pra nossa senhora do Rosário, podia fazer o Congado e podia fazer a coroação.  Dom Manuel ficou abismado. Nunca pensou que tivesse tanto apoio do Governador.
E – E seus companheiros estavam preocupados?
CR – Demais. Nem pode imaginar. Preocupados demais. Pensavam que seria o nosso fim. O nosso destino estava por um triz. Se eu falasse uma palavra errada, tudo estava perdido. Perdido sem retorno. Nosso trabalho perdido, enterrado na mina outra vez. A gente tinha coragem de recomeçar? Teria sido a nossa última desgraça dessa vida de sofrimento sem fim. Quando eu cheguei de volta ao salão da mina, ela estava cheia de gente. Vizinhos e amigos. Os companheiros apreensivos com essa audiência do Governador. Nem brancos ele recebia, agora um negro forro! Coisa boa não podia de ser. Vi os olhos de todos me perguntando: “Que aconteceu?” Que aconteceu? Eu respondi: “Estamos salvos. Zâmbi Apungo nos acompanha nossa senhora do Rosário guia nossos passos”. Aí, todo mundo se acalmou e eu pude contar tudo que aconteceu. O bispo estava presente pra confirmar tudo com um sorriso de aprovação. Aí, marcaram o dia da festa da coroação.
E – Festa da Coroação?
CR – Chico Rei foi autorizado pelo Governador de fazer uma festa para coroar o Rei do Congo em Vila Rica. A nossa festa como devia ser. Tudo do nosso jeito, junto com nossa senhora do Rosário e Santa Ifigênia.
E – Aí, passaram a combinar as providências para a festa da coroação?
CR – Só uma coisa eu coloquei de minha vontade maior. Convidar todos os negros escravos, também os livres e os forros da região. Seria uma festa da raça negra, juntando amigos de Vila Rica, juntos pelo infortúnio da escravidão. A primeira festa de negros de Vila Rica. Muita comida, música e dança. Me ajudem a festejar a minha pátria, a nossa pátria distante e perdida, mas nunca, nunca esquecida. Nunca aprendi a festejar. Peço ajuda, peço ajuda.  
E – E seu povo entrou nos preparativos da grande festa da coroação?
CR – O bispo formou as comissões. Guima ficou fazendo contas e disse que o dinheiro ia acabar. Como fazer? Disse eu então pro Guima: “dinheiro a gente ganha outro. Os negros nunca tiveram nada pra festejar. Vamos gastar o que for preciso para os negros ver a felicidade e a alegria pelo menos uma vez na vida.”
E – E a festa foi um sucesso?
CR – No dia marcado, na hora marcada. Todo mundo de branco espalhado no morro da igreja santa Ifigênia, o bispo celebrando e me coroando rei do Congo no Brasil. Os grandes marujos tocavam e dançavam. Houve comida, bebida, dança e cantoria a noite toda. Os grandes grupos, as mulheres e crianças, dançando e cantando ao redor do templo. Festa interminável. Sentados no chão, descansavam pra depois recomeçar a cantar e gritar. Aí, Formei meu ministério com os companheiros da tropa nova, que já eram empossados no antigo reinado do Congo.
E – A vida passa, as alegrias e as glórias também passam. Mas, por isso mesmo, temos que aproveitar os pequenos momentos de felicidade.
CR – Nunca imaginei de ter um dia de tanta felicidade. Se eu tivesse morrido naquela hora mesmo, minha vida não teria sido em vão. Os negros escravos e forros, mulatos e crioulos se juntaram em volta de mim pedindo a bênção. Não reneguei ninguém. No final, o bispo dom Manoel da Cruz, ajoelhou aos meus pés sujos de poeira, e beijou minhas mãos, dizendo pra mim: “Vossa Alteza é um rei muito querido de seu povo. Eu também, de hoje em diante, faço parte do seu povo.” Não pude deixar de desarmar meu coração. Um santo homem branco, livre e independente, me fustigar assim, cara a cara, uma gratidão que eu nunca poderia imaginar. Meu coração ficou despedaçado. Esse ato de dom Manoel da Cruz, assim de improviso, me arrasou. Foi covardia dele, penso agora. Meu coração ficou despedaçado. Minha voz desapareceu. Minha vista escureceu. Foi um momento de escuridão no meu pensamento que quase me derrubou no chão.
E – Compreendo a sua emoção. Foi uma bela festa mesmo. Nunca tinha pensado que o Rei do Congo no Brasil tivesse tanto sentimento de amor a seu povo. Pelo sofrimento, deveria ser um revoltado.
CR – Posso dizer agora, apesar de tudo, que nunca fui tão afortunado em meus dias de vida quanto o tempo que passei nessa terra de Vila Rica. Sem querer, sem imaginar, sem procurar, Zâmbi Apungo, Santa Ifigênia e nossa senhora do Rosário puseram meus pés nessa terra abençoada que é o Brasil, do meu respeito e admiração.
E – Nós agradecemos as suas palavras. Nosso país teve o privilégio de acolher você e a tropa nova, para o seu próprio engrandecimento. Tanto a tropa nova como todos os amigos da África que aportaram nesse Brasil, para trabalhar e produzir a troco de sofrimento e dor. Tantos morreram de tanto trabalho e de tanta humilhação. Hoje, são brasileiros. Brasileiros que honram o nosso povo. Mais alguma palavra de despedida para o povo brasileiro?
CR – Meu povo do Congo é agora povo do Brasil, sem escravidão. Tinha a certeza de que qualquer povo nasce livre e tem pés e mãos sem cordas e sem amarras. Tem a cabeça livre e o pensamento solto como o vento. Ninguém é dono de ninguém. Somos livres pelo mundo afora. A nação do Congo agradece. A nação do Congo tem o que agradecer.


Referência bibliográfica
ALVARENGA, Rogério de. Rei do Congo em Vila Rica. Contagem/Minas Gerais: ed. Santa Clara, 2001.
[Essa obra obteve o primeiro PRÊMIO VERÍSSIMO DE MELO (ensaio folclórico), concedido pela UNIÃO DE ESCRITORES BRASILEIROS – UBE – Rio de Janeiro, em agosto de 2002, concorrendo com mais de dois mil outros trabalhos, em nível nacional].

Um comentário:

  1. Eparre^ Sabia muito pouco sobre Chico Rei agora sei um pouco, obrigado.

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