quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

VAQUEIRO CARIOCA


O garoto Marcelinho estava estudando no Rio de Janeiro. Nas férias de julho, convidou um colega de colégio para passar uns dias na fazenda do seu avô, em Santa Maria de Itabira, interior do estado de Minas Gerais. O avô vivia numa bela fazenda, em pleno conforto da modernidade, no meio de árvores frutíferas, de hortas, de jardins e de animais. Natureza cheia de verdor, um céu aberto, um sol rutilante e uma noite cheia de estrelas.
Marcelinho era tratado como rei pelo avô e o carioca adolescente, visitante, de nome Gustavo, deveria ser tratado, então, como príncipe.
Mas, o carioquinha cheirava a asfalto, gás carbônico e muita maresia. Perguntava tudo, queria saber de tudo. Era curioso demais. Falava o que pensava e o avô se encantava com as perguntinhas dele.
- Essas galinhas soltas no terreiro não fogem?
- Não! Não fogem. Elas gostam daqui e da nossa proteção. 
Gustavinho se sentiu em casa, pronto e disposto para tudo. Na tarde do dia seguinte, foi nadar no tanque, debaixo da cachoeira, no meio da mata. Foi um custo pra botar o garoto em cima de um paciente cavalo.
- Não precisa de carteira de habilitação pra montar a cavalo?
- Precisa só da autorização do avô!
Os dois filhos do vaqueiro eram acompanhantes do Marcelinho e do Gustavo. Pularam nas garupas dos cavalos e Marcelinho comandou a expedição pelo no meio da mata. A pose e a elegância do Marcelinho impressionaram o hóspede. Foi uma festa a cavalgada. Melhor ainda foi o cachoeirão de água límpida e esvoaçante, caindo das rochas e fazendo uma lagoa, pronta para ser nadada.
O carioca ficou deslumbrado. Só tinha visto cachoeiras em filmes ou na televisão. Ali, no meio da mata, achou que estava vivendo um paraíso.
E os dois filhos do vaqueiro e Marcelinho tiraram a roupa num átimo e pularam na água fria. Gustavinho ficou temeroso, e meio arredio. Depois começou a tirar a roupa também e ficou com um belo calção de náilon vermelho e pulou na água. Fria demais e gostosa demais.
Foi aí que ele notou que todos os garotos nadavam pelados. Eles nunca precisavam de calção ou de short para nadar. Percebeu que estava fora de moda e acabou tirando também o seu calção. Foi aí que os dois filhos do vaqueiro começaram a rir. Riram de verdade. Gustavinho percebeu que estava sendo a causa da gozação. Os irreverentes filhos do vaqueiro ficaram ainda mais admirados e riam sem parar. Por quê?
- Bunda branca!
Eram as marcas do sol na praia. Sem imaginar mais causas, nasce um apelido que começa pela evidência. Estava mesmo bem moreno queimado de sol, e com a bunda branca. A denominação era irreversível. Daí pra confirmar um apelido foi um pulo. Ninguém mais conhecia Gustavo e sim, o “Bunda Branca.”
O avô riu muito e pediu desculpas. Mas, com isso, a família inteira riu e adotou, mesmo às escondidas, o apelido natural. Gustavinho gostou da brincadeira, gostou do apelido e foi em frente, aproveitando o conforto da fazenda.
Depois, Gustavinho queria saber como se tirava o leite. O avô explicou a técnica e demonstrou. Gustavinho, na prática, apertava a teta da vaca, mas o leite não esguichava. Por fim, quase deu certo. Suou para tirar um copo de leite. Com mais um ano de prática ia conseguir tirar um litro de leite por hora.
O avô explicou que cada vaca recebia um nome de batismo logo que desse a primeira cria. E relacionou os nomes principais: Granada, Lubrina, Pintada, Guanabara, etc.
- Quando eu chamo a Lubrina, ela vem e seu bezerro vem no mesmo momento.
- Não é possível!
- Quando a vaca pare pela primeira vez, eu registro o nome dela e ela aceita o nome para o resto da vida.
- Quero experimentar chamar uma vaca, amarrar e tirar o leite todo. Quero ser um vaqueiro de verdade. Isso mesmo. Quero ser vaqueiro.
- E já está contratado!!!
O avô ficou encantado com a petulância e disposição do Gustavinho. Era bonito ver um jovem querer ser um vaqueiro de verdade. Nem seu neto jamais tinha pensado em ser vaqueiro.
Mas o atual vaqueiro, Janjão, meio gozador, recomendou para que ele chamasse a Marajá, que era mansinha e podia dar uma boa oportunidade para o Gustavinho treinar.
Gustavinho gritou, imitando os vaqueiros:
- Marajá! Marajaaaá! Marajaaaá!!!
Veio um boi chifrudo, velho boi carreiro branco. Veio caminhando lentamente para a direção do chamamento. Ficou parado, esperando, sempre obediente.
Gustavinho  pegou a corda de amarrar as pernas das vacas e deu o laço com a maior perfeição. Pegou a balde, a toalha de limpar as tetas, jogou no ombro e partiu para debaixo da barriga da Marajá. Ao agachar debaixo da Marajá, notou que ela não tinha as quatro tetas e somente duas, representadas pelo saco murcho, onde havia outrora,  dois bagos enormes do boi carreiro. Gritou para o avô:
- Oi, vô!!! Essa vaca está com defeito!
E o caipira, Janjão, veio tirar um sarro em cima do carioquinha? Não podia perder o emprego pra esse tal de Gustavinho, já de contrato firmado com o avô.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

NEPOTISMO GRAMATICAL


“Você sem ti” “Tu sem você!” Se “você” vier, não venha acompanhado. Se “tu” vieres, venhas sozinho! Se vierdes juntos, eu não deixo entrar. Não quero confusão na minha casa.     
                                                                            
Esta recomendação já foi lançada aos quatro ventos no meu discurso universal e, no meu canto sublimado, sempre exijo nepotismo gramatical. Cada qual fica com a sua família, protege-a, faz as suas concordâncias, acerta as suas quantidades. Assim também, define as suas variações de sexo. Eu disse variações? Melhor diria, indicações de gênero. Não se trata de crime de racismo nem de preconceito. Trata-se de organização étnica, de princípios. Nada contra “você.” Nada contra “tu”. Cada um deve viver dentro do seu território e deve impor ordem na sua descendência, na sua família, na sua estirpe, na sua raça. Evitam-se misturas degradantes, inconsequentes, condenáveis.  Abomino a salada pronominal! Sempre me propugnei também por manter a eufonia para as declarações verbais, além do ritmo e da cadência militar para os versos.
Além disso, para enfatizar as minhas recomendações, os verbos devem ser desdobrados para o acompanhamento integral ao sujeito, qualquer que seja ele. Não me preocupo em levantar as qualificações morais do sujeito. Os verbos devem ser submissos a ele e flexionar como esse sujeito ordenar, O sujeito é um comandante autoritário, ditatorial, irreverente. Os verbos são seus escravos e dançam no ritmo da música que ele tocar.
Portanto, minha recomendação final é esta: se “tu” vieres, tragas a tua família para ocupares todos os postos vagos e dominares o texto na sua totalidade. Nepotismo total e irrestrito.
Mas, se “você” resolver aparecer, venha bem acompanhado de seus familiares, seus tios, avós, netos e, sobretudo, dos seus sobrinhos em quantidade. Se “você” for divorciado, traga também a ex-esposa. Enteados? Nada contra. Nepotismo vale tudo!
Assim, cada um puxa a brasa pra sua sardinha! Certo?      

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A CIDADE DO SOL

CRÍTICA LITERÁRIA


Se você não quiser se ligar ou entrar em transe, não pegue esse livro de HOSSEINE , Kaled, A Cidade do sol, ed. Nova Froneira, RJ, 2007.


O Afeganistão, esse pouco conhecido país do mundo árabe, se revela aos olhos estupefatos dos leitores nas suas clareiras psicológicas, sociais e políticas num romance que, de tão verdadeiro, parece ficção e com tantos acontecimentos chocantes, que parece mesmo realidade. Eis a questão.
 “Você é uma harami! – diz Nana à sua filha Mariam de apenas cinco anos – Você não vai ser nada, não vai ser ninguém. Será sempre uma ilegítima, e terá que aguentar o seu estado de bastarda o resto da vida.”  
Não deixa de ser uma bela lição para a formação da autoestima da filha. E acrescenta: “Nunca terá um lar!”
Mas Mariam adorava o pai, Jalil  que, de vez em quando, aparecia no seu casebre, uma kolba. Era homem de negócios em Herat, tinha três esposas e nove filhos legítimos. Ela, Mariam, uma harami.
Aos 13 anos, desiludida com o pai e tendo perdido a mãe, foi dada em casamento a um viúvo de 40 anos, residente em Cabul, distante 600 quilômetros. Um novo mar de infelicidades. Como esposa tinha os trabalhos domésticos sem poder sair de casa desacompanhada do marido e tinha que usar burqa. O marido, um senhor. Uma mulher desacompanhada na rua seria espancada e entregue ao seu marido, que tinha a obrigação de fiscalizar  a sua esposa.
Se o tempero do jantar não ficasse ao paladar do marido, um chute, uma bofetada na cara, um dente quebrado!
Reclamar de quem? Da polícia? Da legislação do país?
Nana tinha razão: “Assim como o ponteiro da bússola indica o norte, assim também o dedo acusador do homem aponta sempre para uma mulher!” Uma realidade consagrada.
Mas Rachid, o marido, resolveu arranjar uma segunda esposa. Tinha condições financeiras para isso. Arranjou uma menina loura que passou a ser a sua “Mercedes”. – “Você é um carro velho! Quem manda agora na casa é a minha Mercedes”     
Rachid era culpado? Claro que não era totalmente culpado. A cultura
da sua gente modelava os homens dentro de padrões dessa categoria. Esse o resultado. Tinha que dar os corretivos às suas esposas para que não fosse tachado de “maricas”. Mas as esposas se unem contra a opressão!
A técnica de narrar não deixa o leitor respirar. Acontecimentos e surpresas a cada instante, sem meias palavras. Não deixa o pobre do leitor descansar. O livro é modelo de narrativa moderna. Sem enfeites e sem adjetivos, sem piedade. Sadismo? Talvez apenas realidade afegã. O homem não suporta chifre, mesmo tendo várias esposas. E um homem sem chifre é um animal indefeso.
E a vida continua no regulamento constitucional do país, com os talibãs e outros invasores guerreiros, nas escrituras do Alcorão e no fanatismo religioso, com todas as suas iniquidades justificadas e aceitas plenamente. É dose!
Kaled não é um Sidney Sheldon, mas seu lugar está reservado na literatura universal. Sheldon vive com seus magnatas e altos negócios. Kaled vai ao fundo do poço da raia miúda do Afeganistão. Nesse caso, seria um lugar impenetrável para um romancista americano.
Por tudo isso, quem tiver a ventura de ter em mãos esse livro pode ter a certeza de que está com a primeira obra recomendada do século XXI, que ora abre as suas portas.  
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