terça-feira, 11 de abril de 2017

ENTREVISTA COM NICÁCIO GÖEBEL


Entrevista realizada com o jovem Nicácio Göebel, personagem do romance ficção “EM NOME DO FILHO”, 3i editora, Belo Horizonte, 2014.



Ele, um amparado em família, mas que, independentemente dessa condição, não deixou de ser um adotado. Sente-se um intruso no leito familiar. Aceito compulsoriamente por parentes, mas sempre lhe deram o título de adotado. Isso mesmo. O adotado é um vaso de porcelana. Belo e frágil. Nunca sujeito a intempéries.

Vejamos a sua percepção do seu mundo!!!



Entrevistador - Tudo bem, Nicácio? Podemos conversar um pouco hoje?
Nicácio - Claro que sim. Nesta noite de sábado, sempre estou só mesmo.
Ent - Você me disse que é adotado. Quem são seus pais biológicos? Chegou a conhecê-los? 
Nic – Nunca vi a cara do meu pai e nem tenho nenhuma lembrança da minha mãe. Nem fotografia dela eu já vi. Nem nunca me interessei em ver. Não me importo com eles. Nenhuma afeição me despertam.
Ent – Não faz diferença para você?
Nic – Pode parecer uma história perversa para quem não tem o sentimento à flor da pele. Eu penso demais e me martirizo por isso, a cada dia que envelheço. Não posso negar. Hoje estou mais maduro e ainda mais revoltado. Nem sei se fico me queixando dessas grosserias da vida.
Ent – Algum acontecimento que magoa?
Nic – Tantos acontecimentos decorrentes que me marcaram a ferro e fogo. Para começar, sou gêmeo univitelino. Meu irmão foi meu amigo e companheiro por algum tempo. Tempo suficiente para deixar um vazio insuportável no meu coração.
Ent – Que aconteceu?
Nic – Minha mãe biológica colocou os dois filhos num balaio e deixou na porta de uma irmã. Depois, sumiu no mundo. Falo assim em sentido figurado porque não posso me lembrar quando nem como isso aconteceu. Soube mais tarde que ela arranjou um marido alemão se sumiu com ele.
Ent – Nessa época você não poderia reconhecer a sua mãe. 
Nic – Não conheci a minha mãe biológica, posso dizer isso com certeza absoluta, porque esses dias não ficaram marcados na minha memória. Como isso poderia ter acontecido? Não sei e nunca procurei saber. Nunca me fez falta. Não sei como era a cara dela. Não me lembro de ter ouvido a sua voz. Não me lembro de um afago, de um beijo sequer. Nem uma fotografia. Se chegasse às minhas mãos, eu a rasgaria em mil pedaços. Não sei se o meu irmão tem alguma coisa dela. Eu nunca quis ver a cara dela. As cartas que ela me mandava eu rasgava na hora da chegada. Nem abria. Num impulso de violência, destruía na hora. Ódio? Isso e mais um tanto de ingredientes que fervilhavam na minha mente e que me fizeram perder tantas noites de sono. Azedavam o meu humor. Sentia-me rejeitado. Rejeitado é pouco na expressão natural. Fomos jogados fora. Encontramos um novo lar com a minha tia, cheia de filhos, que nos acolheu.
Ent – Encontrou pais adotivos? Foram adotados?
Nic – Fui crescendo sem saber de nada, mas um sentido extra me impulsionava para a desconfiança, para a incerteza, para a dúvida. Passei a não acreditar em ninguém e a perceber que me olhavam de maneira diferente.
Ent – Nenhuma lembrança da sua mãe biológica?
Nic – Devo ter tido alguns dias de convivência com ela, de ter podido sentir seu cheiro, seu carinho, sua afeição. Ela desapareceu e isso foi um desastre para mim e que atingiu a estrutura da minha personalidade, mesmo sem ter consciência disso. Devo ter chorado demais. Como posso reviver essa separação? Faço um esforço de memória, querendo ir ao fundo do meu inconsciente, ao grande porão das lembranças rejeitadas e adormecidas e não consigo vislumbrar nada. Escuro total.
Ent – Percebo que sua mãe vive em você.
Nic – Minha mãe, minha vida. Não vê-la nunca foi um castigo imposto a mim e ao meu irmão. Minha mãe adotiva nunca recriminou a minha mãe. Cuidou de mim como se fosse um dos seus filhos, em igualdade de tratamento. Eu devo ter sido uma criança agressiva e agitada. Falo por mim, porque o meu irmão tomou outro caminho na vida.
Ent – Que aconteceu com seu irmão?
Nic – Outro papo difícil e de amarga desventura. E meu irmão? Uma mágoa feroz ronda a minha imaginação e minha privacidade intelectual de sentir abandonado, de ser novamente rejeitado. Ninguém pode me entender, sei disso.
Ent – Sim, mas o que aconteceu com seu irmão?
Nic – Pois aconteceu mais um fato doloroso na minha infância que muito me abalou. Fomos separados. Nem uma lágrima eu deixo cair, hoje, por ele, meu irmão. Não existem mais lágrimas. Penso que naquela idade eu percebi a separação. Será que eu tenha percebido que meu irmão foi levado embora, para longe de mim? 
Ent – Foram separados?
Nic – Uma separação! Este foi também um acontecimento doloroso. Um tio, que morava no estado do Paraná, resolveu adotar um de nós. Não fui eu o escolhido.
Ent – Seu irmão foi levado embora?
Nic – Meu tio não tinha filhos e escolheu um dos gêmeos para levá-lo em seus braços. Eu fiquei. Meu irmão foi embora. Sumiu. E onde está ele agora? Não sei. Há quarenta anos que não sei por onde ele anda nem o que ele faz. Fiquei sabendo que teve graduação superior e que completou sua formação no exterior. Nada mais. Foi bem orientado na vida. Só isso. Ele sabe onde estou e pode me procurar quando quiser. Ou se quiser. Eu me sinto constrangido de procurá-lo. Há esse tempo todo que não ouço a sua voz. Digo que não sinto mais a falta dele. Podem ser palavras falsas de minha parte. Ou que sejam palavras ditas sem pensar. Mas, no fundo, no fundo do coração, falando muito francamente, ele é a única pessoa que existe neste mundo, capaz de me emocionar. Mas, mesmo assim, nenhuma lágrima eu deixo cair por ele, agora. Sei ou imagino que ele seja muito mais feliz e próspero do que eu.
Enc – Pensa voltar a vê-lo algum dia?
Nic – No meu orgulho de rejeitado, afasto-me da ideia de revê-lo um dia, mas ainda não morri. Tudo pode acontecer. Deixo que os ventos façam a sua parte e que soprem a meu favor.
Ent – Foi uma covardia!
Nic – Meu tio foi cruel comigo. Cruel e desumano. Não o perdoo. Eu me martirizo por essa decisão. Mesmo consultando meu inconsciente, meu coração magoado, mesmo assim, como juiz, eu o condeno. Foi uma covardia dele, sim. Pegar duas crianças, órfãs de pai e mãe, gêmeos abandonados, e propor uma separação? O único vínculo de afeição ceifado abruptamente? Foi cruel, além das suas imaginárias boas intenções.
Ent – Você permaneceu com a sua tia?
Nic – Daí pra frente, virei um dos filhos de Fausto Leonísio Brasco, o marido da minha tia, Amélia Göebel. Ah, sim, esqueci de dizer. No meu registro de nascimento, consta como pai, o tio Fausto e mãe, Amélia. Sou grato a eles. Sem eles, o que seria de mim? Mas é mais uma mentira que porto nos meus ombros pela minha vida afora. Oficialmente, não sou adotado. Sou integrante da família. Isto pela vontade dos pais adotivos, não dos meus supostos irmãos. Era uma grande mentira que eu atribuo como se fosse mesmo uma trapaça. 
Ent – Nicácio, grato pelas suas palavras carregadas de sinceridade e de emoção. Podemos ainda, em outra oportunidade, continuar essa nossa conversa confidencial e fraterna?
Nic – Se houver interesse de sua parte, ainda podemos conversar. A minha jornada sempre foi tumultuada, mas cada pessoa tem seus fantasmas, a sua verdade ....e nela sobrevive com deve. Grato por me ouvir.

  

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